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MP 984: o futebol entre urgências e advertências




O país do futebol foi surpreendido com a edição da Medida Provisória (MP) nº 984, de 18/06/2020, que, em meio à pandemia de Covid-19, alterou importantes dispositivos da chamada Lei Pelé (Lei nº 9.615, de 24/03/1998).

O choque decorre muito da utilização de uma MP para tratar de um assunto que, a princípio, não está na pauta de prioridades de um país que ainda luta para entender em que ponto efetivamente está no enfrentamento de uma crise sanitária sem precedentes para a atual geração.

Estes são os termos que o artigo 62 da Constituição da República prevê a possibilidade de edição, pelo Presidente da República, de Medidas Provisórias:

“Art.62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.”

A primeira crítica que se levantou foi da pertinência da utilização de uma MP para alterar uma lei que dispõe sobre esporte, mais especificamente dispositivos que dizem respeito diretamente ao dia-a-dia do futebol, atividade que até o próprio dia da edição da referida MP 984/2020, estava suspensa em todo o país.

E tal questionamento encontraria fundamento justamente na observação dos requisitos constitucionais para a edição de MPs, estampados no citado art.62, a saber: relevância e urgência.

Pelo primeiro teste, a MP passa de forma relativamente tranquila. O esporte em geral, e o futebol em particular, se constituem em verdadeiras indústrias que movimentam recursos na casa dos bilhões de reais, gerando uma cadeia de empregos que vão desde os atletas que compõem as diversas equipes, passando pelos trabalhadores empenhados nos equipamentos urbanos que sediam as competições e chegando aos profissionais de comunicação envolvidos com a cobertura e transmissão dos inúmeros eventos.

Se tal repercussão sócio-econômica não for suficiente para configurar a relevância do esporte de alto rendimento, uma série de outras MPs teria que ter ficado pelo caminho.

Restaria, portanto, a apreciação da efetiva urgência da alteração de específicos dispositivos da Lei Pelé neste momento. Com este propósito, há que se compreender exatamente o que foi alterado pela MP 984/2020.

O texto normativo em análise é bem enxuto, contendo apenas quatro artigos, sendo o 4º aquele que fixa a data de sua publicação como termo inicial de sua vigência. Os outros três promovem quatro diferentes grupos de alteração legislativa.

O art.1º altera o art.42 da Lei Pelé, mexendo em duas questões ao mesmo tempo. A primeira é a modificação da titularidade do direito de arena, que passa a pertencer “à entidade de prática desportiva mandante”, esta entendida como a detentora do mando de jogo, ou seja, a agremiação que disputa a partida ou evento esportivo “em casa” na sua própria sede habitual ou em local por ela escolhido.

Esta talvez seja a modificação legal que mais gerou impacto público imediato, e será analisada mais adiante.

A segunda questão abordada na nova redação do art.42 é a alteração do destinatário imediato da cota de direito de arena devida aos participantes do evento esportivo. O novo texto legal do §1º do referido artigo está vazado nos seguintes termos:

“Art.42. (omissis)

“§1º. Serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo de que trata o caput, cinco por cento da receita proveniente de direitos desportivos audiovisuais, como pagamento de natureza civil, exceto se houver disposição em contrário constante de convenção coletiva de trabalho.”

A norma agora prevê a distribuição “aos atletas profissionais participantes”, em contraposição à anterior previsão, que estabelecia que o referido percentual seria repassado “aos sindicatos de atletas profissionais, e estes distribuirão, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo”.

Fica evidente que a MP buscou retirar o intermediário no repasse dos recursos em questão, permitindo o pagamento direto, pela entidade detentora do direito de arena, do percentual legalmente destinado aos seus próprios empregados. Além de expressar maior lógica econômica, suprimindo os custos de transação associados ao repasse de valor a ser posteriormente distribuído entre terceiros, a nova redação do §1º atende à atual tendência de supressão de receitas automaticamente garantidas a sindicatos profissionais, iniciada com a Reforma Trabalhista promovida pela Lei nº 13.467, de 13/07/2017.

A urgência de tal medida se justificaria pela facilitação do acesso dos beneficiários do percentual ao respectivo valor, não mais dependendo da intermediação do sindicato. Tal solução normativa, além de viabilizar a agilização do pagamento aos atletas, também eleva o montante final pago a estes, já que sobre este não mais incidirão custos e remuneração do sindicato pela atividade de distribuição do percentual.

Tais modificações seriam especialmente bem-vindas num cenário em que os atletas sofrem com redução salarial e mesmo com a pura e simples extinção dos seus contratos de trabalho, especialmente naqueles clubes que têm sua atuação limitada à participação nos campeonatos estaduais, cuja realização ficou comprometida pelas medidas de combate à pandemia.

Constatada a urgência, restam duas advertências: o texto anterior do §1º do art.42 previa, em sua parte final, que o percentual do direito de arena seria redistribuído pelos sindicatos aos atletas “como parcela de natureza civil”. Em outras palavras, os respectivos valores não integravam a remuneração dos atletas e não sofriam a incidência de quaisquer encargos previdenciários.

A alteração legislativa suprimiu tal ressalva, até porque se trata de repasse direto de parcela do faturamento da entidade empregadora a uma parte de seus trabalhadores, devendo-se ponderar os efetivos ganhos para os atletas em comparação com os custos sindicais até então incidentes.

Outra advertência diz respeito à efetiva possibilidade de acesso imediato dos atletas a tais verbas, visto que as convenções e acordos coletivos eventualmente firmados com os sindicatos profissionais são atos jurídicos perfeitos, albergados pelo inciso XXXVI do art.5º da Constituição da República, impedindo que a previsão de repasse de recursos para tais entidades seja revogada por norma legal editada posteriormente.

Portanto, nos casos em que haja acordo ou convenção coletiva em vigor, e na qual haja previsão de repasse de tais recursos ao sindicato profissional, os atletas só passarão a fruir o acesso direto à cota de direito de arena após esgotado o prazo de vigência de tais normas coletivas, relativizando sobremaneira a urgência aprioristicamente identificável na edição da MP.

Passando ao art.2º, ali é estabelecida norma temporária, que prevê:

“Art.2º. Até 31 de dezembro de 2020, o período de vigência mínima do contrato de trabalho do atleta profissional, de que trata o caput do art.30 da Lei nº 9.615, de 1998, será de trinta dias.”

O prazo mínimo instituído no art.30 é de três meses. A redução se justifica pela evidente modificação dos calendários esportivos, em que competições – em especial os campeonatos estaduais de futebol profissional – terão sua janela de disputa gravemente estreitada.

Além disso, as agremiações menores, diante das incertezas da retomada, podem ter rescindido os contratos de trabalho com seus atletas, diante da absoluta impossibilidade de continuar suas atividades.

Com a sinalização da possível realização, ainda que em condições restritas, dos eventos esportivos, as entidades inscritas em campeonatos estaduais que já caminhavam para sua conclusão poderão ser obrigadas a remontar seus elencos, mas sem perspectivas para novas competições no restante da temporada, estariam sujeitas a contratações desnecessariamente onerosas.

Desta forma, absolutamente justificável a edição do instrumento normativo extraordinário.

Já o art.3º enseja a revogação de dois parágrafos do art.27-A. Eis os respectivos textos legais:

“Art.27-A. (omissis)

(...)

“§5º. As empresas detentoras de concessão, permissão ou autorização para exploração de serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, bem como de televisão por assinatura, impedidas de patrocinar ou veicular sua própria marca, bem como a de seus canais e dos títulos de seus programas, nos uniformes de competições das entidades desportivas.

“§6º. A violação do disposto no §5º implicará a eliminação da entidade de prática desportiva que lhe deu causa da competição ou do torneio em que aquela se verificou, sem prejuízo das penalidades que venham a ser aplicadas pela Justiça Desportiva.”

Os dois dispositivos, não integrantes da redação original da lei, se inserem num contexto de prevenção de conflitos de interesse que ponham em risco a integridade da competição. Com efeito, o caput e os quatro primeiros artigos dizem respeito à vedação de participação, na mesma competição, de agremiações direta ou indiretamente controladas, coligadas ou relacionadas a uma mesma pessoa física ou jurídica.

As implicações de uma circunstância deste tipo seriam evidentes, gerando-se desnecessária desconfiança sobre a lisura do comportamento de tais equipes, quando possível conjecturar-se que uma delas prejudicaria seu próprio empenho em favor da outra.

Já as vedações relativas às concessionárias de serviços de telecomunicações já partem de uma premissa consideravelmente mais remota, como se a presença da detentora dos direitos de transmissão no uniforme de uma das equipes fosse necessariamente beneficiá-la na respectiva competição; ou, ao revés, que uma agremiação patrocinada por concorrente se expusesse à certeza do prejuízo.

Trata-se, com a devida vênia, de raciocinar com base na patologia. Ao contrário dos acertos naturais dentro de um mesmo conglomerado empresarial e cuja transparência é menor para o público externo, as relações entre patrocinadores e detentores de direitos de transmissão com as agremiações são estabelecidas entre entidades distintas e, para gerarem prejuízo para a competição, demandariam um enorme concurso de pessoas e iniciativas que não justifica, a princípio, a perda econômica decorrente da vedação.

Um exemplo claro é talvez um dos maiores marcos do marketing esportivo nacional: a Coca-Cola era patrocinadora da Copa União, em 1987, estampando sua marca em quase todos os uniformes dos dezesseis participantes da competição. Pois bem, chegaram à final justamente dois clubes que não eram patrocinados pela referida empresa (Flamengo/Lubrax e Internacional/Aplub), sendo prova cabal de que as especulações que poderiam ter dado azo à referida vedação não encontram eco na realidade.

Deste modo, a abertura de possibilidade de patrocínio por um segmento importante da economia, que apresenta expressivo crescimento nos últimos anos, é medida imperiosa para gerar condições pelas quais as entidades de prática desportiva possam buscar recursos imprescindíveis na recuperação da gravíssima crise que já estava instalada antes da pandemia.

Mas aqui também cabe a advertência embutida na vedação revogada: competições desportivas vivem também – e talvez principalmente – de credibilidade, os riscos especulados para explicar a vedação anterior devem estar sempre no radar das autoridades esportivas e, mais do que isso, talvez sejam um mote importante para o estabelecimento de regras que evitem quaisquer questionamentos futuros sobre a lisura da condução da arbitragem ou da própria cobertura jornalística e de entretenimento feita da competição em tela.

Adicionalmente, uma segunda advertência. Há que se atentar para a eventualidade de que regulamentos das diversas competições em curso ou ainda por iniciar não tenham incorporado a disposição prevista nos aludidos §§5º e 6º do art.27-A. Neste caso, também estar-se-ia diante de ato jurídico perfeito que afastaria a aplicação imediata dos efeitos da revogação em comento.

Por fim, a questão mais palpitante: a alteração da titularidade dos direitos de arena. Neste caso, a questão da urgência parece muito mais difícil de ser justificada. Não se logra a identificar como a mudança desta regra viabilizaria a geração de recursos ou agilizaria a retomada da indústria esportiva, especialmente a do futebol.

E tanto se diz pela constatação de que grande parte dos clubes ostenta contratos vigentes, pelos quais cedem os direitos de transmissão de suas partidas por diversos anos adiante. A edição da MP 984/2020, ainda que integralmente convertida em lei, não teria o condão de afetar tais atos jurídicos perfeitos.

Daí a cogitação de alguns setores de que a MP teria sido editada para beneficiar o Clube de Regatas do Flamengo, atualmente envolvido em contencioso negocial com a Rede Globo em torno da remuneração dos direitos de transmissão de suas partidas do Campeonato Carioca.

Entretanto, não se analisa texto legal com base em especulação. Qual seria a eventual urgência a justificar a alteração da titularidade conjunta dos direitos de arena dos clubes envolvidos em cada evento, restringindo-a à agremiação mandante?

Uma possível explicação pode ser encontrada no interessante artigo de Rodrigo Capelo sobre o tema:[1] o jornalista lembra que oito clubes da Série A comercializaram “os direitos de transmissão para a televisão fechada, anos atrás, com a Turner.” Depois de ver sua investida no mercado esportivo fracassar, “a empresa americana não tem mais interesse no futebol brasileiro”.

Ora, havendo 40% (quarenta por cento) dos principais clubes de futebol sem contrato de transmissão, a outorga exclusiva dos direitos de arena a tais agremiações as tiraria de uma situação difícil de negociação, valorizando o ativo quase que triplicado da noite para o dia.[2] O proporção de clubes da Série A pode chegar à metade, caso se considere os casos de Coritiba e Red Bull Bragantino, que ainda não assinaram alguns dos contratos de transmissão, conforme lembra o mesmo artigo citado acima.

Trata-se de fundamentação possível para a adoção de Medida Provisória no caso em tela, indo a Administração Federal ao encontro de iniciativas que facilitem a retomada para os clubes que movimentam mais recursos e geram mais empregos no setor mais importante do esporte nacional.

Outra explicação que também poderia sustentar a urgência necessária à edição da MP 984/2020 é a preocupação com o torcedor, segmento social que merece tutela específica da legislação, como se vê na Lei nº 10.671, de 15/05/2003.

A indefinição a respeito da transmissão de diversas partidas, com a própria supressão de vários jogos de algumas agremiações da grade de programação, iniludivelmente redunda em prejuízo para o espectador dos torneios de futebol disputados no Brasil.

Sendo inequívoco o valor cultural do esporte na sociedade brasileira (não à toa a própria Constituição o reconhece como manifestação sócio-econômica digna de expressa regulamentação no seu texto),[3] a edição de MP que facilite a comercialização das partidas de futebol de todos os clubes teria amparo no resguardo de tais interesses difusos da grande torcida brasileira.

Todavia, ainda que possível entrever um caminho de urgência pelo qual as alterações do art.1º da MP 984/2020 possam ser justificadas, novamente assomam advertências a todos os envolvidos.

A primeira já foi feita acima: a urgência pode ser completamente esvaziada ao se perceber como insuperável a extensão da tutela dos atos jurídicos perfeitos representados pelos contratos de cessão de direitos de transmissão atualmente em vigor.

Ainda que o bloco de clubes destacado por Rodrigo Capelo não tenha contratos vigentes[4] e possa invocar integralmente a nova regra trazida pela MP 984/2020, resta a pergunta: e os contratos firmados por emissoras concorrentes com os eventuais adversários de tais clubes?

Ali, o objeto do contrato envolvia a cessão de direitos que, no momento da sua celebração, eram detidos conjuntamente por mandantes e visitantes. Poderia lei nova atingir tal negociação? Por outro lado, estabelecido novo estatuto jurídico para a titularidade dos direitos de arena, quem não está vinculado a qualquer contrato anterior não poderia fruir de forma plena direito regularmente instituído em lei?

A dificuldade para resolver tais questionamentos advém da natureza necessariamente conjunta do negócio esportivo. Nenhuma agremiação consegue realizar seu potencial econômico de forma absolutamente isolada. Cada segmento da indústria esportiva depende de um rol de concorrentes relativamente parelhos para que o “produto” a ser vendido no mercado tenha um mínimo de atratividade.

E da primeira advertência nasce a segunda: se a mudança no regime de titularidade dos direitos de arena for encarada como uma forma de potencializar os ganhos individuais de cada clube, o futebol brasileiro seguirá na sua trajetória de mediocridade econômica e empresarial, repetindo a constatação que este mesmo autor fez em trabalho publicado cinco anos atrás:

“Num contexto em que a falta de profissionalização gerencial se mistura a interesses econômicos cada vez mais expressivos, cada clube busca os seus interesses, como forma de conquistar uma posição dominante sobre os demais competidores, sem qualquer preocupação com o conjunto em que ele está inserido. Em suma, não se pensa o Campeonato Brasileiro (e as demais competições nacionais) como um produto a ser apresentado, desenvolvido, executado e rentabilizado de forma organizada e atraente...”[5]

Em suma, a MP 984/2020 pode ser uma investida temporária em novos modelos de organização econômica da indústria esportiva brasileira e na disponibilização de instrumentos que eventualmente serão importantes na retomada após a pandemia. Mas, ao mesmo tempo, caminha no limiar dos requisitos constitucionais para sua edição e traz riscos e desafios que precisam ser encarados seriamente por todos os agentes envolvidos, sob pena de ser a enésima tentativa frustrada de criar-se um ambiente próspero de negócios para o esporte brasileiro.


Fernando Barbalho Martins

[1] Entenda como a MP publicada por Bolsonaro interfere nos direitos de transmissão e por que pode mudar o futebol brasileiro. https://globoesporte.globo.com/blogs/blog-do-rodrigo-capelo/post/2020/06/19/entenda-como-a-mp-publicada-por-bolsonaro-interfere-nos-direitos-de-transmissao-e-por-que-pode-mudar-o-futebol-brasileiro.ghtml, acessado em 19/06/2020. [2] A este propósito, o artigo citado é bastante elucidativo, quando fala deste bloco de oito clubes: “Nas regras da Lei Pelé antes da modificação, a Turner havia comprado um pacote de 56 partidas. Ou seja, os jogos desses oito clubes entre si. “Nas regras alteradas provisoriamente pelo governo, este mesmo bloco poderá vender 152 jogos. A soma dos ‘direitos de mandante’ de todos.” (CAPELO, Rodrigo. Op.cit.). [3] Constituição da República; art.217. [4] Op.cit. [5] MARTINS, Fernando Barbalho. Futebol: Manual de (Re)Montagem. Rio de Janeiro: APERJ, 2015, pp.37-38.

 
 
 

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